S!
Perdoem este pobre coitado por voltar a um tópico antigo, mas participei de um seminário com este senhor, e o tema discutido tem a ver com este assunto abaixo, e trata de educação:
p.s.: o texto é longo, mas vale a pena :ok
Universidade, a última reserva do belo
Juremir Machado da Silva Correio do Povo 04/06/2007
Houve um tempo em que se acreditava no bem, no belo e no verdadeiro. Esse tempo não desapareceu. Apenas se fragmentou. O bem não era somente a caridade. O verdadeiro transcendia o oposto da simples mentira. O belo era muito mais do que a fragilidade da aparência. Em muitos lugares, hoje, cultua-se um desses valores, ou, ao menos, parte de cada um deles. Há, apesar do mercantilismo e da futilidade, um espaço onde ainda se encontram: a universidade.
Imagino as gargalhadas de uns, a ironia de outros, o desprezo de muitos. Haverá quem se espante, quem desacredite, quem denuncie a ingenuidade de tal propósito. Numa época em que apontar a inutilidade e a improdutividade da universidade se tornou cliché, defendê-la cheira a demagogia. Nada mais é do que um reconhecimento. Aprendi a conhecer a universidade. Sei de alguns dos seus defeitos, ignoro outros, mas percebo a sua relevância.
A universidade converteu-se numa reserva do saber desinteressado. Nela se pode discutir um poema como a serpente que dança pelo simples fato de que a poesia existe. Nela se pode dissecar a obra de Max Stirner pelo bem da erudição. Nela se pode ler Michel Foucault para entender um pouco mais do passado e, quem sabe, algo do futuro. A universidade abre-se ao novo sem descuidar do antigo.
Não ignoro que existem instituições caça-níquel nem gente medíocre. Mas tenho visto, sem que isso apareça na grande tela da informação, produção, estudos, pesquisas e publicações. Belos livros que muitos nem imaginam, soterrados, às vezes, por problemas de distribuição, outros por serem sofisticados e descomprometidos com pragmatismo do dinheiro ou show da sociedade do espetáculo.
Trabalho numa universidade que me tem ensinado o prazer da vida académica. Em seis anos, descobri qualidade, competência e criação onde antes, por força de meus óculos profissionais, só via discursos obscuros, teses empoladas e saber inútil. Finalmente, também, compreendi o drama das universidades públicas, do sucateamento, do descaso governamental, do desinteresse pelo projeto essencial de uma sociedade: a educação.
Fala-se que a universidade se distanciou do mundo real. Entendi que, com frequência, o dito mundo real não quer ser contrariado pela universidade e, por isso, dela se afasta. A sociedade precisa redescobrir a universidade. Outro dia, uma garota me disse que nunca tinha ouvido falar em Rimbaud. Fiquei perplexo. Depois, diante da sua juventude, acalmei-me. Porém, ela me perguntou para que servia conhecer Rimbaud. Pensei em muitas respostas. Por fim, atrevi-me: para nada. Num universo da utilidade reduzida ao trivial, somente o preço das coisas sem preço pode reinventar a arte de viver.
Numa dessas últimas tardes ensolaradas, algo me consolou totalmente: dois rapazes, sentados na grama, discutiam o génio de Jean-Arthur. De repente, eu compreendi todo o meu amor pela universidade. Vivo num mundo onde se podem ver as pegadas do rato silvestre, ouvir fragmentos de Eliot, alaridos dos marxistas, discussões teológicas e, sejamos honestos, frases de Rimbaud encobertas por pesadas fumaças entre risos e citações.
As universidades formam, claro, os profissionais necessários à sociedade. Isso já é muito. Ainda assim, vão além e criam ambientes favoráveis a tudo o que é rejeitado no reino das vantagens imediatas. Uma das tarefas essenciais da universidade atual é a preservação da leitura. O professor deve ter a coragem de combater a mania do xerox, deve atrever-se a indicar livros, exigir resenhas, promover debates, defender a ,relevância dessa tecnologia secular, a palavra impressa.
A universidade cria as condições para que muitos realizem a fabulosa descoberta da ficção, do sonho, da literatura, da arte, do saber pelo saber, do saber comprometido também, do saber como filosofia de vida.
Na era do marketing, a universidade ganhou contornos de fortaleza, mesmo contaminada por outros componentes, do bem, do belo e do verdadeiro. Lembrei-me de Walt Whitman: "Vejo, vejo exatamente em direção ao céu, imensas massas de nuvens, / Lugubremente devagar elas flutuam, silenciosamente dilatando-se/ e mesclando-se, / Com às vezes uma entristecida estrela, remota e semi-eclipsada, / Aparecendo e desaparecendo".
Juremir Machado da Silva é escritor, jornalista e historiador. É doutor em Sociologia pela Universidade René Descartes, Paris V, Sorbonne. Em Paris, de 1993 a 1995, foi colunista e correspondente do jornal Zero Hora. Atualmente, além de coordenador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUC-RS, assina uma coluna duas vezes por semana no jornal Correio do Povo de Porto Alegre/RS.
SP!