Meu bisavô estudava medicina em Leipzig quando a guerra começou. Foi recrutado em 1916 como enfermeiro. Serviu na frente ocidental onde contraiu tuberculose. Após o término do conflito foi aconselhado a se mudar para algum lugar de clima quente onde poderia, quem sabe, ter uma sobrevida de uns dez anos. Veio para o Brasil e viveu até os 93 anos...
Eu ainda me lembro bem daquelas noites de verão na praia de Tramandaí onde tínhamos uma casinha de madeira que nem existe mais. Eu era muito pequeno para sair na "balada" junto com meu irmão, irmã, primos e primas. Então eu ficava junto com meu bisavô depois do jantar, ele sentado numa cadeira de balanço feita de vime, eu numa cadeirinha de camping. Ele me falava sobre a Grande Guerra, sobre suas experiências, sempre com um brilho no olhar distante, como se estivesse revivendo tudo aquilo.
Acho que fui um privilegiado...
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Um dos muitos "causos" que ele contava, foi quando a princesa Viktoria Louise, filha caçula do Kaiser resolveu dar as caras no hospital de campanha onde ele servia. O lugar não ficava muito longe das trincheiras, mas o setor era considerado "seguro".
Ela chegou vestida num impecável traje de enfermeira (pura "lorota", segundo meu bisavô), e participou do almoço.
Havia chovido muito dias antes de modo que improvisaram um caminho com tábuas, tipo uma passarela, que no entanto ela acabou dispensando, para desespero das damas de companhia que vieram a tiracolo, a condessa fulana, a baronesa etc. e tal, todas igualmente trajadas de "enfermeiras" e que obviamente também se viram obrigadas a meter o pezinho na lama.
No dia anterior todos tiveram que por em ordem seus uniformes. Então era só gente lavando roupa, engraxando botas, pregando botões, remendando túnicas e é claro, cortando o cabelo e fazendo a barba.
Para o almoço foram armadas compridas mesas de madeira ao ar livre pois fazia sol no dia da visita.
Ele lembrava que tinha de tudo naquela ocasião, desde costeletas de porco, salsichas, pão de "verdade" e até "apfelstrudel", sidra e charutos. Tudo foi trazido pela comitiva da princesa...
E chegou a sobrar comida! Os médicos evidentemente ficaram com as garrafas de sidra e os charutos. Os enfermeiros conseguiram ficar com algumas garrafas de "schnapps" e cigarros que acabaram dividindo com os pacientes.
Meu bisavô dizia que a princesa era bem "bonitinha". Ela e as damas de companhia estavam sorridentes o tempo todo, como se não tivessem uma noção clara de tudo o que estava acontecendo em volta. Para elas aquilo devia ser apenas uma espécie de piquenique ou algo parecido.
Depois do almoço ela tirou fotos e conversou com alguns pacientes escolhidos com antecedência pelo comandante, e instruídos para não fazer qualquer tipo de queixa. Claro que eles eram aqueles mais "apresentáveis", com ferimentos leves. Os feridos graves foram convenientemente deixados nas barracas, longe da vista, e sedados com clorofórmio para que não ficassem gemendo à toa...
A banda regimental dos "Jägers" de Bremenhaven também veio, e tocou o "Preussens Gloria", a "Badenweiler" e outras músicas.
Em seguida ela cumprimentou os médicos um por um e deu de presente à cada um deles uma medalhinha comemorativa do evento. Já os enfermeiros, perfilados mais atrás tiveram que se contentar apenas com um aceno de mão da princesa, mas também receberam as tais medalhinhas que foram entregues depois pelo comandante. Este por sinal também repassou à princesa uma lista de pedidos elaborada pelos médicos e que certamente nunca foi atendida.
Por fim, a banda tocou o Hino Alemão, todos saudaram o Kaiser e a princesa se mandou junto com sua comitiva.
Logo em seguida começou a chover de novo...
) e é estranho, já que o século 20 começou aí.
